O termo "venture capital" foi cunhado em 1946 pelo professor Georges Doriot, da Harvard Business School - conhecido como o "pai do venture capital". Doriot fundou a American Research & Development Corporation (ARD), a primeira gestora de VC do mundo.
Mas, para chegarmos a esse ponto e falarmos sobre o início de venture capital, precisamos dar alguns passos para trás. Para isso, exploraremos a criação dos registros contábeis, o uso da responsabilidade limitada nas empresas, a Segunda Guerra Mundial, Oppenheimer e até mesmo as expedições marinhas. Como assim? Eu explico.
Empréstimos vs Investimento em Equity
Por volta do século XIX, era muito comum encontrarmos investimentos em empresas por meio de empréstimos, mas pouco se falava (ou se pensava) em investimentos diretos, por meio de equity (ou seja, por meio da compra de participação societária em uma empresa) - que é uma das formas mais comuns de investimento em VC hoje em dia.
Para que se pudesse pensar em investimentos desta forma, foi preciso, primeiro, termos registros contábeis confiáveis, para que o rastreamento da entrada e da saída de recursos no dia a dia das empresas fosse possível. Antes, isso não existia e havia muita incerteza sobre a saúde financeira delas. Se os patrões poderiam desconfiar de seus empregados, que dirá os possíveis investidores. Por isso, emprestar dinheiro parecia algo muito mais seguro e sensato a se fazer.
Além disso, caso o investidor pensasse em investir, ainda assim, teria responsabilidade ilimitada ao entrar no quadro societário da empresa. O patrimônio dos sócios e da empresa eram considerados como um só, não havendo separação entre eles. Exemplo: mesmo que a empresa falisse, o patrimônio do sócio poderia ser atingido por credores pedindo algum tipo de pagamento. Atualmente, usa-se principalmente o modelo de sociedades limitadas, tendo a sociedade seu próprio patrimônio, separado de seus sócios e assim permanecem, indo a empresa bem ou não.
A primeira mudança ocorreu em 1811, no estado de Nova York, trazendo a aplicação de responsabilidade limitada para empresas. Sua popularidade e a atração de capital para o estado foram tantas que os demais estados americanos não puderam deixar de lado essa mudança. Isso foi visto como uma revolução à época - tendo NYC como um exemplo até hoje, sendo a principal capital financeira do mundo. Já no Brasil, fomos ver essa modalidade apenas no ano de 1919, por meio do Decreto 3.708/19.
Sobre os registros contábeis, essa mudança veio em 1879 com a criação da caixa registradora, que permitiu o acompanhamento das entradas e saídas de dinheiro no dia a dia das empresas, trazendo mais informações sobre a saúde financeira delas, bem como mais clareza sobre se a empresa estava dando lucro ou não.
Os primeiros investimentos em equity
Apesar do cenário acima, já existiam alguns investimentos em equity naquela época. E aí, vem a pergunta: quando pensamos em "investimentos privados em empreendimentos arriscados antigamente", o que vem à mente? Se pensou em “expedições marinhas” é exatamente isso. Dizem que as expedições foram um tipo "primitivo" de venture capital, por serem investimentos privados em empreendimentos de risco.
Em seu livro, VC: An American History, Tom Nicholas compara o venture capital com a indústria baleeira. "A indústria baleeira no século XIX pode ser comparada ao venture capital moderno... A caça às baleias era o arquétipo de um negócio com distribuição assimétrica, sustentado por eventos altamente lucrativos, mas de baixa probabilidade... A distribuição de lucros de cauda longa exercia o mesmo fascínio sobre os financiadores das viagens de caça às baleias, assim como para a indústria de venture capital, dependente de retornos extremos de um pequeno subconjunto de investimentos. Embora outras indústrias ao longo da história, como exploração de ouro e petróleo, tenham sido caracterizadas por resultados de cauda longa, nenhuma indústria chega tão perto quanto a caça às baleias de se igualar à organização e distribuição de retornos associados ao setor de VC.”
Ao saírem com suas embarcações, os donos dos navios não sabiam se eles afundariam, se seriam saqueados por piratas ou se retornariam com as tão esperadas mercadorias. Note que a possibilidade de retornar com mercadorias estava em 1/3 das opções. Ou seja, a possibilidade de não obter êxito na expedição era muito maior do que um possível sucesso - por isso muitos comparam a empreendimentos em tecnologia, por serem tão arriscados quanto.
Incentivo do governo
Tendo investidores dispostos a arcar com riscos, sociedades de responsabilidade limitada e registros contábeis, o que faltava? Basicamente, o incentivo do governo.
Na Segunda Guerra, depois que o Japão atingiu a base dos EUA em Pearl Harbor, no Havaí, este se viu obrigado a entrar em guerra. Por conta disso, o governo dos EUA iniciou uma corrida à tecnologia e criações eletrônicas (radares, mísseis) para abater o inimigo.
Alemanha, União Soviética, EUA.. todos focados em financiar as melhores armas e tecnologia para ganhar a guerra.
Foi nesse momento que Vannevar Bush sugeriu ao Presidente Roosevelt à época para financiar as melhores universidades do país, trazendo incentivo do governo para pesquisas de ponta. Especialmente as universidades da Costa Leste foram as escolhidas: Harvard, MIT e Columbia.
Oppenheimer
Nesses últimos meses falou-se bastante sobre o filme que conta a história de Julius Robert Oppenheimer, conhecido como o "pai da bomba atômica". No filme, é possível ver "ao vivo e a cores" o que foi esse apoio do governo dos Estados Unidos nos projetos secretos para a Segunda Guerra Mundial - neste caso o Projeto Manhattan, em Los Alamos, Novo México, liderado por Oppenheimer.
Dando mais detalhes, o objetivo do Projeto era desenvolver uma bomba nuclear, o que culminou na criação das bombas atômicas utilizadas no bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, que forçou a rendição do Japão.
Frederick Terman - O Pai do Silicon Valley
Frederick Terman, que foi aluno de Vannevar Bush no MIT e participou de um dos laboratórios secretos em Harvard, voltou à Costa Oeste após o fim da Segunda Guerra, com a intenção de transformar Stanford em uma universidade de ponta. Para isso, criou um sistema de 4 passos:
- Atrair os melhores alunos e professores. Terman acreditava que Stanford deveria atrair os melhores alunos e professores do mundo para se tornar uma universidade de elite. Ele criou bolsas de estudo para alunos de alto desempenho, e recrutou professores de renome de outras universidades.
- Focar em pesquisa. Stanford precisava se concentrar em pesquisa para se tornar um líder mundial em inovação. Por conta disso, Terman criou novos programas de pós-graduação e apoiou a pesquisa de seus alunos e professores.
- Criar um ambiente de colaboração. A colaboração era essencial para a inovação. Terman criou, então, programas que incentivaram os alunos e professores a trabalharem juntos em projetos de pesquisa.
- Transferir tecnologia para o setor privado. Terman entendia que a pesquisa universitária deveria beneficiar a sociedade como um todo. Ele criou programas que ajudaram os alunos e professores a transferir suas descobertas para o setor privado.
Esse sistema fez com que muitos empreendimentos começassem a ser criados e desenvolvidos, transformando Stanford em uma sede de empreendedorismo, o que ajudou a atrair investidores para a Bay Area. Na visão de Steve Blank, o que conhecemos do Silicon Valley hoje em dia teve início aqui, com Terman. Ponto importante aqui foi que erros passaram a ser aceitos como parte da cultura em Stanford.
Blank também comenta que Terman foi o primeiro defensor do método de "desenvolvimento do cliente": enquanto Stanford se converteu a uma cultura empreendedora focada nas necessidades do cliente, outras universidades, como Berkeley, continuaram com seu "foco na Grande Ciência e Laboratórios Nacionais". Foi isso que, em última instância, tornou a Universidade Stanford e o Vale do Silício um ímã para capitalistas de risco.
As primeiras gestoras de VC
"It was Doriot’s belief that an individual, given the chance and the financing, could change the world."
Como comentado, o termo "venture capital" foi usado pela primeira vez em 1946 pelo professor Georges Doriot, da Harvard Business School, fundador da American Research & Development Corporation (ARD), a primeira gestora de VC do mundo.
"Demonstrando um profundo entendimento do que era necessário para criar e nutrir uma startup, Doriot trouxe uma habilidade inata para seu conceito de venture capital. Em seu livro sobre Doriot, intitulado "O Primeiro Venture Capitalist", Udayan Gupta escreveu: "Num mundo em que o financiamento de riscos e inovações era aleatório e caótico no máximo, o Professor Doriot trouxe clareza e introduziu um sistema. Ele reconheceu vários elementos-chave no processo. Empresas reais levam tempo para serem construídas. Empresas jovens precisam de várias rodadas de capital próprio, não de dívida. E o mais importante, tratar os acionistas - aqueles que assumem o risco de fornecer capital próprio - de forma adequada."
Outras grandes gestoras de venture capital foram fundadas nos anos 70, como Kleiner Perkins Caufield & Byers, Sequoia Capital e Bessemer Venture Partners. Essas empresas ajudaram a impulsionar o crescimento do venture capital e a criar o ambiente propício para o surgimento de empresas inovadoras e de alta tecnologia. Elas investiram em algumas das empresas mais bem-sucedidas da história, como Apple, Google e Amazon. Além disso, o sucesso dessas gestoras ajudou a popularizar o venture capital e a impulsionar o crescimento do setor nos EUA e em todo o mundo.
Coincidentemente (ou não), nos anos 70 também houve a criação do microprocessador, que, segundo Carlota Perez, deu causa à Revolução Digital (também conhecida como a Terceira Revolução Industrial). A Revolução foi caracterizada pelo desenvolvimento de novas tecnologias digitais, como o microprocessador, computadores, internet e inteligência artificial.
Por fim, em 1978, mais uma "virada de chave". O Ministério do Trabalho, nos EUA, passa a permitir que os fundos de pensão façam parte de seus investimentos em venture capital, após a discussão com o NVCA - National Venture Capital Association. A partir desse momento, um montante altíssimo começou a ser destinado para investimento em VC.
Depois disso, estamos mais familiarizados com a história.
Interessante pensar em como VC surgiu
E ainda mais pensar em como podemos ser agentes propulsores desse setor. Trazendo cada vez mais informação, incentivando o empreendedorismo, a inovação e apoiando ideias "fora da caixinha".
Se formos resumir VC hoje em dia, diríamos basicamente que:
Venture capital, também conhecido como "capital de risco", é um tipo de modalidade de investimento direcionado a empresas emergentes e inovadoras, com uso de tecnologia, que possuem um alto potencial de crescimento.
Os investimentos costumam ser feitos por investidores anjos e gestoras de fundos de investimento, os quais fornecem capital em troca de equity, seja por meio de instrumentos de dívida ou, diretamente, em participação societária.
Ao receber investimento, as empresas obtêm recursos financeiros para impulsionar seu crescimento, investir em seu produto, expandir sua equipe, entrar em novos mercados e etc.
Não que essa definição esteja errada, mas há muito mais por trás do que imaginamos, como pudemos ver.
Este texto faz parte de um projeto meu chamado "Almanaque de um Investidor de VC". Meu desejo é compartilhar com vocês, interessados no tema ou em investir em venture capital, o que aprendi nos últimos anos de mercado. Veja este material como um convite para interagirmos. Por isso, deixo aqui um pedido: se tiver qualquer dúvida ou tiver interesse em aprofundar qualquer assunto, me avise :) - o meu e-mail é isabella@astellainvest.com.
Material complementar:
- A aula de Steve Blank sobre "The Secret History of Silicon Valley", no Museu da História do Computador.
- A Evolução do VC no Brasil e perspectivas para o futuro - texto escrito por Guilherme Lima e Vitor Pajaro, associates da Astella.
Almanaque do Investidor de VC:
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